Assim como o slogan “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”, campanha publicitária feita para a Coca-Cola por Fernando Pessoa em 1927, a expressão “o que é nacional é bom”, é uma forma de pensar que há muito tempo já ultrapassou os contornos de slogan publicitário.
Atributos difíceis de provar, como a qualidade, sustentabilidade e segurança alimentar são hoje em dia prioridades dos consumidores.
Através da tecnologia blockchain, as redes alimentares locais encontram uma forma transparente de mostrar os seus compromissos ambientais e sociais, assim como de ultrapassar ineficiências e encontrar financiamento para novas formas de produção.
Ação e Reação
Toda a ação gera uma reação. A maturação de redes globais das cadeias de produção e distribuição alimentares nos anos 80 deu origem à campanha publicitária da marca Nacional “O Que é Nacional é Bom”.
Em 1990, a BSE ou doença da vaca louca chegava a Portugal por uma vaca importada do Reino Unido. Nas três décadas que se seguiram, a sustentabilidade e a preservação dos ecossistemas saíam dos bastidores para ocuparem o centro do palco das lutas politicas e preocupações sociais.
A escassez de alimentos nas prateleiras dos supermercados durante os primeiros meses da pandemia SARS Covid-19 em 2020, cenário repetido em 2022 no início da guerra na Ucrânia, tornou a necessidade de encurtar as redes alimentares inescapável.
As comunidades lutaram contra os efeitos negativos da globalização, as empresas persistiram na produção local e os consumidores procuraram tornar mais sustentáveis os padrões de consumo.
No entanto, várias ineficiências levam a que a preservação dos ecossistemas não possa ser garantida apenas por redes alimentares locais.
A impossibilidade de economias de escala traduz-se em preços pouco competitivos, a opacidade de informação relativamente a produtos torna difícil diferenciar a qualidade, a falta de coordenação entre atores resulta em desperdício alimentar, e o investimento em métodos de produção mais sustentáveis não encontra financiamento.
Para toda a ação, há uma reação.
Uma blockchain é uma rede de milhões de computadores em que qualquer tipo de informação (dados, APIs, imagens, mensagens) pode ser armazenado de forma segura, transparente e imutável, sem que nenhuma organização ou intermediário tenha controlo sobre o que acontece na rede.
A emergência da tecnologia blockchain e o uso da mesma em cadeias alimentares locais têm permitido superar os muitos desafios que enfrentam.
Da Opacidade à Transparência
A opacidade é inerente à produção e distribuição alimentar, tanto a nível global como local. Apesar das redes alimentares locais reduzirem o número de intermediários, rastrear e conhecer a origem dos alimentos continua a ser um desafio.
Através da blockchain este problema é superado. A tecnologia funciona como uma base de dados em que a informação é permanentemente guardada em corrente (chain) e de forma transparente. Por ser descentralizada, é impossível apagar ou alterar qualquer informação.
Assim, qualquer consumidor pode ter acesso à informação sobre um produto – os químicos que foram usados na plantação de um vegetal, o pagamento ao agricultor e o tipo do transporte até ao local de venda.
Numa altura em que os padrões de consumo se alteram para privilegiarem produtos biológicos, naturais e sustentáveis, projetos locais estão a tomar partido da blockchain para se diferenciarem, justificarem diferenças de preços e darem a conhecer os seus compromissos ambientais.
Em Portugal, a empresa Amêndoa Veracruz venceu em 2021 o prémio Inovação pelo projeto Amêndoas com Identidade, que está a usar a tecnologia blockchain para dar a conhecer aos consumidores o uso de smart farming para a produção de amêndoas, assim como tornar o percurso do produto 100% rastreável pelos consumidores, tudo isto através de um QR code.
O Desperdício Têm Os Dias Contados
Um terço de toda a comida produzida em todo o mundo não chega aos pratos. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) estima que entre a colheita e o comércio se perda cerca de 14% da produção agrícola.
Em Portugal, os projetos Fruta Feia ou Refood popularizaram-se pelos esforços feitos contra o desperdício alimentar, que só na União Europeia é cerca de 88 milhões de toneladas por ano.
O desperdício acontece mesmo em redes de produção local dada as dificuldades resultantes da gestão e coordenação logística entre cada fase da vida dos bens alimentares. A blockchain, por permitir aceder imediatamente à informação necessária para auxiliar decisões eficientes, facilita a comunicação entre atores e agiliza a cooperação e coordenação das redes.
Nas montanhas Andes, no Equador, o projeto El Ordeño usa a tecnologia blockchain para coordenar a gestão de produtores, processadores e distribuidores de leite de forma a tornar mais sustentável e economicamente justa aquela que é uma das atividades económicas mais importantes da região.
Através da blockchain é possível saber imediatamente a localização de um produto, o que facilita as operações de gestão assim como permite agir eficazmente na eventualidade de contaminação.
O projeto Sustainable Shrimp Partnership (SSP), também no Equador, permite controlar a qualidade e garantir a segurança alimentar do camarão produzido em aquacultura pelos vários produtores locais.
Economias Locais Mais Fortes
Hoje em dia, cada gota de água conta e é por isso que investimentos em projetos sustentáveis são essenciais. Mas, apesar dos benefícios globais, estes investimentos não tem um retorno financeiro apelativo a curto ou médio prazo para instituições financeiras tradicionais.
A blockchain é uma tecnologia descentralizada, o que faz com que não tenha barreiras à entrada. Qualquer utilizador de uma Dapp (aplicação descentralizada) pode participar nas decisões, relativamente ao que acontece na app.
Na Sardenha, Itália, o Sardex é uma moeda digital hospedada numa blockchain que permite o pagamento de bens e serviços, e o financiamento de projetos locais.
Desta forma, a blockchain permite o financiamento pela comunidade de projetos locais que são decididos e financiados pela comunidade.
Um pouco por todo o mundo, as blockchain permitem o acesso a novas formas de organização de cadeias de produção que resulta no desenvolvimento de economias locais mais transparentes, sustentáveis e comunitárias.